navigate_before
navigate_next
arrow_back

Há mesmo um dilema nas redes? Indicamos três livros para ajudar a pensar no assunto.

 

Lê-se que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos entrou com um processo contra o Google, afirmando que a empresa sufoca a concorrência. A empresa nega a prática, mas, há quem diga que a ação pode abalar as estruturas no Vale do Silício. Independente das consequências do processo para o futuro da rede, a acusação joga lenha na fogueira acesa pelo filme “O dilema das redes”, da Netflix, que tem movimentado a web, as redes sociais, os almoços de domingo em família. Se você trabalha com marketing digital -ou mesmo se não trabalha – e se não se manteve desconectado nas últimas semanas, não passou incólume pelas discussões alimentadas pela produção. Mas será que a internet e as tecnologias digitais – ou as empresas que emergiram delas – são mesmo uma ameaça? Será que mesmo os dilemas hoje creditados à elas são uma novidade?

Alienação, desinformação, radicalização

O documentário faz alertas contra efeitos nocivos das redes sociais – não só para seus usuários mas também para as comunidades onde estão inseridos. Como argumento, usa depoimentos de executivos e técnicos que, segundo eles mesmos, deixaram seus postos depois se consumirem em conflitos éticos devido ao trabalho que desenvolviam. Entre eles, Aza Raskin, inventor do sistema de rolagem infinita usado pela maioria dos sites; Guillaume Chaslot, um dos desenvolvedores do algoritmo de vídeos recomendados no YouTube; Alex Roetter, ex-vice presidente de engenharia do Twitter; e Bailey Richardson, desenvolvedora que trabalhou nos primórdios do Instagram.

 O filme, dirigido pelo cineasta americano Jeff Orlowski, vencedor do Emmy e indicado ao Oscar em 2013, atira para todos os lados, mas é o Google e o Facebook que são os alvos mais atingidos. As participações de Tim Kendall, ex-diretor de monetização do Facebook, e de Justin Rosenstein, um dos co-criadores do botão ‘Curtir’, são demolidoras. E usa a história de Tristan Harris, como fio condutor. Ex-funcionário do Google, onde atuava como especialista em ética de design, ele saiu da empresa e fundou o Center for Humane Technology. Assim, em linguagem simples – simplista, dizem os mais críticos – o filme acusa as empresas de usar estratégias que acabam viciando os usuários e fomentando a alienação da realidade, a radicalização e a polarização extrema, e o aumento da descrença nos fatos e na ciência. Algo inédito e de consequências imprevisíveis.

 Bombástico mas pouco original. Essa percepção de que algo que poderia mudar o mundo para o bem está sucumbindo ganancia e a disputas de poder não é nova. De forma mais ou menos constante, acompanhou o surgimento de cada uma das tecnologias da informação que mudaram o mundo nos últimos cem anos. A história é lembrada pelo escritor americano Tim Wu no livro “Impérios da Comunicação: Do telefone à internet, da AT&T ao Google”(Zahar, 2012). Ele mostra como as tecnologias da informação, que surgem em meio a um cenário de extremo otimismo e abertura, acabam fundando monopólios com tendências draconianas de controle e acumulação de poder. E que, a despeito disso, mudaram profundamente a sociedade. Para o bem e para o mal. Foi assim com o telégrafo, o telefone, o rádio, a TV, a TV a Cabo. Não seria diferente com a Internet. Ele repassa os detalhes da criação da Web e das hoje gigantes da tecnologia (Apple, Google, Facebook, e outras) para chegar à conclusão que historia está se repetindo.

 “Talvez nunca antes, na história da civilização, tenha havido exemplo tão impressionante de desenvolvimento e do poder da mente humana sobre as questões do mundo”, opinou a revista National Geographic em 1916 a despeito de uma demonstração da AT&T na qual sua rede de telefonia de longa distância ligou uma plateia atônita presente no Willard Hotel, em Washington, a um posto de fronteira com o México. No mesmo evento, no que talvez tenha sido a primeira apresentação multimídia da história, combinou rádio, fonógrafo, um projetor de imagens e seu protótipo de telefone sem fio. 

Comunicação que leva ao entendimento

Um ativista pela abertura da rede, Tim Wu explica que, como as pessoas acreditam que a comunicação leva a um melhor entendimento mútuo, um reconhecimento da humanidade em comum, talvez seja por isso que qualquer nova tecnologia da informação sempre traga consigo uma esperança de melhoria de todos os males da sociedade.

 E talvez isso explique a surpresa e quando, em “O dilema das redes”, executivos, técnicos e acadêmicos alertam para aspectos negativos das mídias sociais, como o controle sobre o comportamento dos usuários e seu potencial de entregar conteúdos falsos ou fora do contexto. No entanto, olhando para trás, constatamos que, muito antes do Facebook e do Google, as acusações de controle, desinformação e alienação caminham lado a lado com a visão utópica de cada uma das tecnologias da informação.

 Nos anos 30, enquanto o rádio e o cinema levavam líderes políticos e astros do entretenimento para o cotidiano das pessoas, Goebbels usou e abusou dessas tecnologias para conquistar (e controlar) corações e mentes no Terceiro Reich.

 Anos depois, muito antes das Fake News entrarem na mira, jornais do mundo inteiro afirmaram, com base em relato do Secretário de Estado dos Estados Unicos, o general Collin Powell, em discurso nas Nações Unidas, que o Iraque tinha grande arsenal de armas químicas – e que por isso seria alvo da fúria militar do Uncle Sam. Fake News. Alguns anos depois, outro escritor americano, Noam Chomsky, alertava para o papel da mídia na construção do consenso. Para ele, a propaganda política estaria para os Estados democráticos assim como a violência para os Estados totalitários. Conceito bem detalhado no livro  “Midia: Política propaganda e manipulação (Martins Fontes, 2013)”. Em outra obra, “A manipulação do público” (Futura, 2003) , ele também chamava a atenção para o fato de que a mídia não está apenas vendendo seu conteúdo, mas seu público. Ouviu isso de Tristan Harris no documentário da Netflix? Pois é. O conceito não é novo.

 Mas estamos mesmo diante de um dilema? Escolhas precisam ser feitas, mas nenhuma passa pelo abandono das redes. Ninguém deixou de usar.o telefone no auge do poder das empresas que monopolizaram o serviço ao longo de todo o século XX. Não estamos dizendo que não há problemas na forma como estas empresas por vezes se relacionam com seus públicos. Gostaríamos de ver, por exemplo, mais transparência a respeito dos critérios que compõem os algoritmos que passaram a reger boa parte das nossas relações. E de pensar que há um esforço genuíno para evitar uma concentração excessiva de poder político, econômico e social nas mãos de uma ou duas empresas. Como Tim Wu ressalta,numa indústria da informação, o custo do monopólio não pode ser medido apenas em dólares, mas também nos seus efeitos sobre a economia de ideias e imagens, restrições que podem, em última análise, chegar à censura.

Caminhos para o futuro

Estudioso das indústrias de mídia e tecnologias e um ativista pela neutralidade das redes, Wu acredita que a saída para estes impasses percorrem alguns caminhos, e nenhum deles passa pelo alarmismo. Um é o uso consciente das plataformas. Como das outras vezes em que uma tecnologia da informação mudou as sociedades onde foram inseridas, não há como voltar atrás. Mas é possível olhar para o passado para tentar antever alguns dos problemas que virão. 

O outro passa pela regulação, sem exageros. É preciso haver regras mínimas, de forma que as práticas empresarias não se sobreponham aos direitos dos cidadãos. Por isso ele defende os esforços para a criação de uma legislação assertiva e de agências reguladoras que garantam sua aplicação.

 E, para ele, é esta a batalha, a que vai consolidar como será nossa relação com as tecnologias e empresas que nasceram e cresceram no ambiente digital, que começamos a ver agora. O documentário da Netflix e o trabalho feito por Tristan Harris no Center for Humane Technology, fundado por ele, são apenas um ponto neste quadro. Bem como os benefícios trazidos pelas tecnologias. E mesmo a forma como as empresas se posicionam nesse momento.

No início de outubro, o Facebook publicou uma resposta às acusações feitas pelo filme, admitindo que reconhece que há problemas, mas que vêm adotando medidas para erradicá-los ou mitigá-los. E argumenta que o documentário ignora muitas dessas iniciativas. Já o Google afirma que o processo aberto pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos contra a companhia por supostas violações à legislação de concorrência é “profundamente falho” e que os usuários terão mais dificuldade em acessar ferramentas de busca melhores e celulares se o governo norte-americano vencer o caso. Pelo que vemos, o caminho será longo. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

5 × 5 =